sexta-feira, 27 de maio de 2011

Sobre a religiosidade e a piedade


“Parece ser outra a convicção comum do vulgo. Com efeito, são muitos os homens que parecem acreditar que são livres apenas à medida que lhes é permitido entregarem-se à licenciosidade e que renunciam a seus direitos se são obrigados a viver conforme os preceitos da lei divina. Acreditam, assim, que a piedade e a religiosidade e, em geral, tudo que está referido a firmeza do ânimo, são fardos de que eles esperam livrar-se depois da morte, para, então, receber o preço da sua servidão, ou seja, da piedade e da religiosidade. E não é apenas por essa esperança, mas também, e sobretudo, pelo medo de serem punidos, depois da morte, por cruéis suplícios, que eles são levados a viver, tanto quanto o permitem sua fraqueza e seu ânimo impotente, conforme os preceitos da lei divina. Se os homens não tivessem essa esperança e esse medo, e acreditassem, em vez disso, que as mentes morrem juntamente com o corpo, e que não está destinada, aos infelizes esgotados pelo fardo da piedade uma outra vida, além desta, eles voltariam a sua maneira de viver, preferindo entregar-se a licenciosidade e obedecer ao acaso e não a si mesmos. Isso não me parece menos absurdo do que, se alguém, por não acreditar que possa nutrir, sempre, o seu corpo com bons alimentos, preferisse saciar-se de venenos e substâncias letais; ou se, por ver que a mente não é eterna ou imortal, preferisse, por isso, ser demente e viver sem razão, coisas que, de tão absurdas, quase não merecem ser mencionadas.”

Spinoza, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007, p. 237 (escólio da prop. 51 da parte V).