sexta-feira, 27 de maio de 2011

Sobre a religiosidade e a piedade


“Parece ser outra a convicção comum do vulgo. Com efeito, são muitos os homens que parecem acreditar que são livres apenas à medida que lhes é permitido entregarem-se à licenciosidade e que renunciam a seus direitos se são obrigados a viver conforme os preceitos da lei divina. Acreditam, assim, que a piedade e a religiosidade e, em geral, tudo que está referido a firmeza do ânimo, são fardos de que eles esperam livrar-se depois da morte, para, então, receber o preço da sua servidão, ou seja, da piedade e da religiosidade. E não é apenas por essa esperança, mas também, e sobretudo, pelo medo de serem punidos, depois da morte, por cruéis suplícios, que eles são levados a viver, tanto quanto o permitem sua fraqueza e seu ânimo impotente, conforme os preceitos da lei divina. Se os homens não tivessem essa esperança e esse medo, e acreditassem, em vez disso, que as mentes morrem juntamente com o corpo, e que não está destinada, aos infelizes esgotados pelo fardo da piedade uma outra vida, além desta, eles voltariam a sua maneira de viver, preferindo entregar-se a licenciosidade e obedecer ao acaso e não a si mesmos. Isso não me parece menos absurdo do que, se alguém, por não acreditar que possa nutrir, sempre, o seu corpo com bons alimentos, preferisse saciar-se de venenos e substâncias letais; ou se, por ver que a mente não é eterna ou imortal, preferisse, por isso, ser demente e viver sem razão, coisas que, de tão absurdas, quase não merecem ser mencionadas.”

Spinoza, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007, p. 237 (escólio da prop. 51 da parte V).

domingo, 24 de abril de 2011

Nada é impossível mudar - Bertolt Brecht

Nada é impossível mudar
Desconfiai do mais trivial,
na aparência do singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural
nada deve parecer impossível de mudar.

Sobre o autor:
Bertolt Brecht (1898-1956), nascido em Augsburgo. Escritor e dramaturgo alemão, além de grande teórico teatral. Desde menino escrevia poesias de forte conteúdo social.

sábado, 12 de março de 2011

Segundo Retorno

O mescalina está de volta. A intenção dessa vez é só a de divulgar textos, meus ou não.
Sem explicações sobre minha ausência de mais de um ano. Apenas digo que volto menos ruim, menos preconceituoso, mais ciente da minha imensa ignorância.

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Sobre a opinião universal, segundo Schopenhauer

Só os melhores dizem, com Platão: “os muitos têm muitas opiniões”, isto é, o Vulgus tem muitas lorotas na cabeça, e quem desejar livrar-se delas terá muito trabalho pela frente.
A universalidade de uma opinião, se falamos a sério, não é uma prova nem um indício da veracidade. Os que afirmam isso devem admitir que a distância no tempo priva aquela universalidade de sua força probatória; do contrário deveriam estar em vigor todos os antigos erros que num tempo eram universalmente considerados verdade. Por exemplo, seria preciso aceitar de novo o sistema ptolemaico ou, em todos os países protestantes, o catolicismo; 2) que a distância no espaço produz o mesmo efeito, do contrário, a diversidade de opinião entre os que professam o budismo, o cristianismo e o islamismo os poria em apuros.
O que se chama de opinião geral reduz-se, para sermos precisos, à opinião de duas ou três pessoas; e ficaríamos convencidos disto se pudéssemos ver a maneira como nasce tal opinião universalmente válida. Então descobriríamos que, num primeiro momento, foram dois ou três que pela primeira vez as assumiram e apresentaram ou afirmaram e que os outros foram tão benevolentes com eles que acreditaram que as haviam examinado a fundo; prejulgando a competência destes, outros aceitaram igualmente essa opinião e nestes acreditaram por sua vez muitos outros a quem a preguiça mental impelia a crer de um golpe antes que tivessem o trabalho de examinar as coisas com rigor. Assim crescem dia após dia o número de tais seguidores preguiçosos e crédulos.
De fato, uma vez que a opinião tinha um bom número de vozes que a aceitavam, os que vieram depois supuseram que só podia ter tantos seguidores pelo peso concludente de seus argumentos. Os demais, para não passar por espíritos inquietos que se rebelam contra opiniões universalmente admitidas e por sabichões que quisessem ser mais espertos que o mundo inteiro, foram obrigados a admitir o que todo mundo já aceitava. Nesse ponto, a concordância torna-se uma obrigação. E, de agora em diante, os poucos que forem capazes de julgar por si mesmos se calarão, e só poderão falar aqueles que, totalmente incapazes de ter uma opinião e juízo próprios, sejam o eco das opiniões alheias. E estes, ademais, são os mais apaixonados e intransigentes defensores dessas opiniões. Pois estes, na verdade, odeiam aquele que pensa diferente, não tanto por terem opinião diversa daquela que ele afirma, quanto pela sua audácia de querer julgar por si mesmo, coisa que eles nunca poderão fazer, sendo por dentro conscientes disto.
Em suma, são muito poucos os que podem pensar, mas todos querem ter opiniões. E que outra coisa lhes resta senão tomá-las de outros em lugar de formá-las por conta própria? E, dado que isto é o que sucede, que pode valer a voz de centenas de milhões de pessoas? Tanto, por exemplo, quanto um fato histórico que se encontre em cem historiadores, quando se constata que todos se copiaram uns aos outros, com o que, enfim, tudo se reduz a um só testemunho. “Eu digo, tu dizes e, no fim, o diz também ele; depois de dar-lhe tantas voltas, ninguém mais vê aquilo que se disse”.



Trecho do livro: "Como vencer um Debate sem Precisar Ter Razão"

sexta-feira, 20 de março de 2009

A Morte Devagar

Morre lentamente quem não troca de idéias, não troca de discurso, evita as próprias contradições.
Morre lentamente quem vira escravo do hábito, repetindo todos os dias o mesmo trajeto e as mesmas compras no supermercado. Quem não troca de marca, não arrisca vestir uma cor nova, não dá papo para quem não conhece.
Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru e seu parceiro diário. Muitos não podem comprar um livro ou uma entrada de cinema, mas muitos podem, e ainda assim alienam-se diante de um tubo de imagens que traz informação e entretenimento, mas que não deveria, mesmo com apenas 14 polegadas, ocupar tanto espaço em uma vida.
Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o preto no branco e os pingos nos is a um turbilhão de emoções indomáveis, justamente as que resgatam brilho nos olhos, sorrisos e soluços, coração aos tropeços, sentimentos.
Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto atrás de um sonho, quem não se permite, uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos.
Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música, quem não acha graça de si mesmo.
Morre lentamente quem destrói seu amor-próprio. Pode ser depressão, que é doença séria e requer ajuda profissional. Então fenece a cada dia quem não se deixa ajudar.
Morre lentamente quem não trabalha e quem não estuda, e na maioria das vezes isso não é opção e, sim, destino: então um governo omisso pode matar lentamente uma boa parcela da população.
Morre lentamente quem passa os dias queixando-se da má sorte ou da chuva incessante, desistindo de um projeto antes de iniciá-lo, não perguntando sobre um assunto que desconhece e não respondendo quando lhe indagam o que sabe.
Morre muita gente lentamente, e esta é a morte mais ingrata e traiçoeira, pois quando ela se aproxima de verdade, aí já estamos muito destreinados para percorrer o pouco tempo restante. Que amanhã, portanto, demore muito para ser o nosso dia. Já que não podemos evitar um final repentino, que ao menos evitemos a morte em suaves prestações, lembrando sempre que estar vivo exige um esforço bem maior do que simplesmente respirar.

Martha Medeiros

O mundo precisa de utopias sem esperança

"Há muitos séculos, em um ponto perdido do universo, banhado pelas cintilações de inúmeras galáxias, houve um dia um planeta em que animais inteligentes inventaram o Conhecimento. Foi o instante mais arrogante e mais mentiroso da história do universo, mas foi apenas um instante. Depois de alguns suspiros da natureza, o planeta se congelou e os tais animais inteligentes tiveram que morrer." Nietzsche escreveu isso no fim do século passado, querendo dizer que, por trás da busca racional da verdade, mora o desejo da morte, de esgotamento da vida, por uma letal "explicação" de tudo. No mundo atual, vemos o espantoso descompasso entre o avanço científico e a felicidade humana, vemos a terrível convivência entre as sondas espaciais e o massacre civil na África, vemos a crise pavorosa do capitalismo que se pensava moderno e na verdade não passava de uma selvagem acumulação primitiva. A agonia da Arte é uma das provas do crime moderno, a prova de que esta revolução virtual leva ao suicídio da transcendência, à islamização das massas (vejam os evangélicos e os xiitas) e à estúpida "coisificação" progressiva dos homens, não mais como mercadorias fetichizadas, mas como chips.

Temos, de um lado, o mercantilismo escroto de Hollywood, dos teatrões caretas e dos best-sellers e, do outro, a solidão melancólica das exposições contemporâneas dominadas pelo lobby dos curadores, em geral intelectuais "engajados". No entanto, precisamos de arte, como uvas e frutos e danças e como um canto de Dionísio, pois a ciência e a razão estão querendo chegar aos ossos da "essência". Nietzsche riu dessa pretensão sinistra e foi na mosca: "A ilusão é a essência em que o homem se criou". Para ele, a arte é a ilusão aceitada, a clareza feliz de que a aparência é o lugar do humano e que só nos resta essa hipótese de felicidade num planeta gelado. Não a arte-espetáculo, mas a arte como ritual de embelezamento da vida, como criação existencial, para esquecermos a finitude, ou melhor, para assumi-la e "dançá-la" da melhor maneira. Arte era muito melhor e importante. Hoje, não só o sistema de circulação das mercadorias não nos deseja como muitos artistas embarcaram numa canoa furada, industrializando o desespero. O conceito de "experimental" não pode ficar apenas restrito à ideia de sofrimento, desconstrução de recusa, autodestruição.

Há décadas que o establishment artístico é composto por escultores de terra, sujeitos furando o corpo, violoncelistas de topless e caixinhas com as próprias fezes. Claro que com as exceções do talento individual. Os artistas ficaram sem admiradores, saudosos dos anos 20 ou 30, quando eram deuses. A morte da "aura" da arte é mais difícil de aceitar do que pensávamos. Hoje, a aura passou para o próprio artista, que se vê como um profeta abandonado. Sobrou ao artista uma atitude masoquista, fazendo qualquer coisa para reconstruir a "aura" à sua volta, até se mutilando em body art ou em instalações estapafúrdias. O artista atual típico produz uma obra pequena envolvida por muita teoria; poderia dispensar a obra e expor a teoria. "Onde estão os artistas?", perguntava o ensaísta Brad Holland, sacaneando os filhotes de Duchamp, que "fez uma obra-prima que foi um urinol. E chegou ao fim da vida jogando xadrez como se fosse um manifesto artístico. Meu avô também acabou num urinol jogando xadrez". Claro que Duchamp fez a importante faxina no narcisismo deslumbrado dos modernistas dos anos 20, mas agora precisamos de um novo "surplus" de vida. Como disse o crítico: "Antigamente, o artista de vanguarda chocava a classe média; hoje, a classe média choca o artista de vanguarda".

É impressionante como frases que Mallarmé poderia ter dito, como "Estamos tentando romper com as normas", sejam usadas como slogan do anúncio do McDonald’s. Brad fala sobre o "multiculturalismo" politicamente correto que dizima as universidades: "Não entendo porque os artistas que odeiam os clichês de sua própria cultura desejem tão ansiosamente adotar os clichês de culturas sobre as quais eles nada sabem. É preciso ter cuidado com os intelectuais. Às vezes, eles conseguem o que querem..." Outro dia, vi a exposição de Jorge Guinle no MAM de São Paulo. Conheci esse grande artista jovem, pouco antes de ele morrer. Era um brilho desesperado, autoirônico, que vemos em suas telas. Há ali uma alegria, uma busca de razões para viver, há uma esperança de vida que o contemporâneo típico nos recusa. Sentimos essa fome vital também em artistas como Nuno Ramos e Vik Muniz, que acusam o golpe do mundo atual, riem do impasse da arte, brincam com ele e o resultado é paródico, cínico até, mas que acaba celebrando a vida.

Será que não vai se esgotar a denúncia do feio pelo "mais feio",que oculta um idealismo utópico, por adesão inversa a um impossível platonismo; será que não vai acabar a ideia de que o irrelevante, o superficial e a bobagem conceitual são profundos? Tudo isso é a herança maldita da "vanguarda" dos anos 60/70. Como criticou uma vez Louis Jouvet: "Tudo muda; só a vanguarda não muda..." O "novo" não poderia ser um "belo" que denuncia, com sua luz, a injusta vida? A arte tem de ser , como queria Stravinski, "exaltante". A arte lamenta a perda da natureza, brinca de preencher a "falha" fundamental do humano. Como escreveu o louco gênio Artaud: "A arte não é a imitação da vida. A vida é que é a imitação de alguma coisa transcendental com que a arte nos põe em contato". É isso aí. A arte tem de ser uma "utopia sem esperança". Estamos precisando de um novo Van Gogh. Que arte precisa ser reinventada? Talvez um "neossublime", agora que o nome de Picasso já é uma marca de automóvel.


Arnaldo Jabor