sexta-feira, 20 de março de 2009

O mundo precisa de utopias sem esperança

"Há muitos séculos, em um ponto perdido do universo, banhado pelas cintilações de inúmeras galáxias, houve um dia um planeta em que animais inteligentes inventaram o Conhecimento. Foi o instante mais arrogante e mais mentiroso da história do universo, mas foi apenas um instante. Depois de alguns suspiros da natureza, o planeta se congelou e os tais animais inteligentes tiveram que morrer." Nietzsche escreveu isso no fim do século passado, querendo dizer que, por trás da busca racional da verdade, mora o desejo da morte, de esgotamento da vida, por uma letal "explicação" de tudo. No mundo atual, vemos o espantoso descompasso entre o avanço científico e a felicidade humana, vemos a terrível convivência entre as sondas espaciais e o massacre civil na África, vemos a crise pavorosa do capitalismo que se pensava moderno e na verdade não passava de uma selvagem acumulação primitiva. A agonia da Arte é uma das provas do crime moderno, a prova de que esta revolução virtual leva ao suicídio da transcendência, à islamização das massas (vejam os evangélicos e os xiitas) e à estúpida "coisificação" progressiva dos homens, não mais como mercadorias fetichizadas, mas como chips.

Temos, de um lado, o mercantilismo escroto de Hollywood, dos teatrões caretas e dos best-sellers e, do outro, a solidão melancólica das exposições contemporâneas dominadas pelo lobby dos curadores, em geral intelectuais "engajados". No entanto, precisamos de arte, como uvas e frutos e danças e como um canto de Dionísio, pois a ciência e a razão estão querendo chegar aos ossos da "essência". Nietzsche riu dessa pretensão sinistra e foi na mosca: "A ilusão é a essência em que o homem se criou". Para ele, a arte é a ilusão aceitada, a clareza feliz de que a aparência é o lugar do humano e que só nos resta essa hipótese de felicidade num planeta gelado. Não a arte-espetáculo, mas a arte como ritual de embelezamento da vida, como criação existencial, para esquecermos a finitude, ou melhor, para assumi-la e "dançá-la" da melhor maneira. Arte era muito melhor e importante. Hoje, não só o sistema de circulação das mercadorias não nos deseja como muitos artistas embarcaram numa canoa furada, industrializando o desespero. O conceito de "experimental" não pode ficar apenas restrito à ideia de sofrimento, desconstrução de recusa, autodestruição.

Há décadas que o establishment artístico é composto por escultores de terra, sujeitos furando o corpo, violoncelistas de topless e caixinhas com as próprias fezes. Claro que com as exceções do talento individual. Os artistas ficaram sem admiradores, saudosos dos anos 20 ou 30, quando eram deuses. A morte da "aura" da arte é mais difícil de aceitar do que pensávamos. Hoje, a aura passou para o próprio artista, que se vê como um profeta abandonado. Sobrou ao artista uma atitude masoquista, fazendo qualquer coisa para reconstruir a "aura" à sua volta, até se mutilando em body art ou em instalações estapafúrdias. O artista atual típico produz uma obra pequena envolvida por muita teoria; poderia dispensar a obra e expor a teoria. "Onde estão os artistas?", perguntava o ensaísta Brad Holland, sacaneando os filhotes de Duchamp, que "fez uma obra-prima que foi um urinol. E chegou ao fim da vida jogando xadrez como se fosse um manifesto artístico. Meu avô também acabou num urinol jogando xadrez". Claro que Duchamp fez a importante faxina no narcisismo deslumbrado dos modernistas dos anos 20, mas agora precisamos de um novo "surplus" de vida. Como disse o crítico: "Antigamente, o artista de vanguarda chocava a classe média; hoje, a classe média choca o artista de vanguarda".

É impressionante como frases que Mallarmé poderia ter dito, como "Estamos tentando romper com as normas", sejam usadas como slogan do anúncio do McDonald’s. Brad fala sobre o "multiculturalismo" politicamente correto que dizima as universidades: "Não entendo porque os artistas que odeiam os clichês de sua própria cultura desejem tão ansiosamente adotar os clichês de culturas sobre as quais eles nada sabem. É preciso ter cuidado com os intelectuais. Às vezes, eles conseguem o que querem..." Outro dia, vi a exposição de Jorge Guinle no MAM de São Paulo. Conheci esse grande artista jovem, pouco antes de ele morrer. Era um brilho desesperado, autoirônico, que vemos em suas telas. Há ali uma alegria, uma busca de razões para viver, há uma esperança de vida que o contemporâneo típico nos recusa. Sentimos essa fome vital também em artistas como Nuno Ramos e Vik Muniz, que acusam o golpe do mundo atual, riem do impasse da arte, brincam com ele e o resultado é paródico, cínico até, mas que acaba celebrando a vida.

Será que não vai se esgotar a denúncia do feio pelo "mais feio",que oculta um idealismo utópico, por adesão inversa a um impossível platonismo; será que não vai acabar a ideia de que o irrelevante, o superficial e a bobagem conceitual são profundos? Tudo isso é a herança maldita da "vanguarda" dos anos 60/70. Como criticou uma vez Louis Jouvet: "Tudo muda; só a vanguarda não muda..." O "novo" não poderia ser um "belo" que denuncia, com sua luz, a injusta vida? A arte tem de ser , como queria Stravinski, "exaltante". A arte lamenta a perda da natureza, brinca de preencher a "falha" fundamental do humano. Como escreveu o louco gênio Artaud: "A arte não é a imitação da vida. A vida é que é a imitação de alguma coisa transcendental com que a arte nos põe em contato". É isso aí. A arte tem de ser uma "utopia sem esperança". Estamos precisando de um novo Van Gogh. Que arte precisa ser reinventada? Talvez um "neossublime", agora que o nome de Picasso já é uma marca de automóvel.


Arnaldo Jabor