Todos os cristãos concordam que Deus é o primeiro princípio e a fonte de todas as coisas; que ele as criou, as conserva e que, sem seu socorro, elas cairiam no nada. Seguindo esse princípio, fica claro que ele criou o que chamamos de Diabo ou Satanás, assim como criou a todas as demais criaturas. E, quer ele o tenha criado bom ou mau – o que aqui não vem ao caso -, segue-se desse princípio que, se o Diabo subsiste tão perverso como é, conforme se diz, só pode ser com a intervenção e a permissão de Deus. Ora, como é possível conceber que Deus conserve uma criatura que não apenas o maldiz sem parar e o odeia mortalmente, mas que ainda faz de tudo para corromper seus amigos para ter o prazer de maldizê-lo por uma infinidade de bocas? Como, pergunto eu, compreender que Deus mantenha, conserve e deixe subsistir o Diabo, para destroná-lo – se isso lhe fosse possível -, para lhe fazer as piores coisas e para desviar de seu serviço seus eleitos e favoritos? Qual é o objetivo de Deus com isso? Ou melhor, o que se quer dizer quando se falado Diabo e do inferno? Se Deus pode tudo e se nada podemos sem ele, como pode o Diabo odiá-lo, maldizê-lo e roubar-lhe os amigos? Ou Deus está de acordo ou não está; se está de acordo, então o Diabo, ao maldizê-lo, faz apenas o que deve, já que só pode fazer o que Deus quer, e, por conseguinte, não é o Diabo, mas Deus mesmo que se maldiz pela boca do Diabo – algo, em minha opinião, totalmente absurdo. Se Deus não está de acordo, então ele não pode ser onipotente. E, se não é onipotente, será preciso, em vez de um único princípio de todas as coisas, admitir dois, um do bem e outro do mal; um que quer uma coisa, o outro que faz e quer o contrário. Aonde conduzirá esse raciocínio? A declararmos, irrefutavelmente, que não há nem Deus, nem Diabo, nem alma, nem céu, nem inferno da maneira como eles são pintados, e que os teólogos – quer dizer, os que enunciam fábulas como verdades divinamente reveladas – são todos, à exceção de alguns ignorantes, pessoas de má-fé que abusam maliciosamente da credulidade do povo para lhe inculcar o que lhes apraz, como se o vulgo só fosse capaz de quimeras, ou devesse ser sustentado apenas com esses alimentos insípidos, onde só se vê o vazio, o nada e a loucura, e nem um só grão de sal de verdade e sabedoria.
Trecho do livro “A vida e o espírito de Baruch de Espinosa / Tratado dos três impostores”. Páginas 198 e 199. Martins, 2007.